segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Brasil: Lutando contra a escravidão dos dias de hoje



Brasil: Lutando contra a escravidão dos dias de hoje
Tradução publicada em 4 Agosto, 2009 19:54 GMT
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Trabalho






Cortador de cana. Foto de Ricardo Funari, usada com permissão.

Que o trabalho escravo é um resquício da escravidão no Brasil, particularmente nos Estados do Norte e Nordeste do país, já se sabe. Tendo sido o último país no mundo a decretar a abolição, em 1888, nas regiões mais isoladas onde os tentáculos da justiça têm dificuldade de chegar, a escravidão temporária por dívida e o trabalho sob coação vêm acontecendo e sendo combatidos regularmente pelo Governo.

No entanto, sempre que ocorre um incidente deste fenomeno no Estado de São Paulo, particularmente na megalópole paulistana, a notícia ganha as capas dos principais jornais brasileiros. Foi o que aconteceu na semana passada, quando fiscais do trabalho de São Paulo, acompanhados de procuradores do trabalho, libertaram 20 pessoas da escravidão (dos quais, dois jovens com 17 anos) em Mogi Guaçu (SP). O blog do Sakamoto, parceiro do premiado site Repórter Brasil, especializado na temática de trabalho escravo, noticiou o ocorrido, chamado a atenção para a ironia de encontrarem adolescentes escravos justo dentro de uma escola abandonada.


OK, isso já aconteceu outras centenas de vezes no Brasil, infelizmente. O absurdo da vez foi que o empregador alojou o pessoal em uma escola pública desativada, com fiação elétrica exposta e esgoto correndo a céu aberto. Mesmo depositando o pessoal nessas condições, disse que cobraria aluguel pela hospedagem.

A prefeitura havia feito um contrato com Pimenta para que ele usasse a casa dos fundos da escola em troca de manutenção do local. A escola Fazenda Graminha foi cedida pelo Estado para o município há nove anos. Agora, o contrato será cancelado e a prefeitura estuda entrar com um processo contra o empregador. O prédio foi lacrado e a secretaria fará um estudo sobre a possibilidade de reativar a escola. Incrível! Discute-se a “possibilidade”…




Cortadores de cana almoçando no meio do canavial, sob um sol escaldante. As refeições são servidas sem talheres, proteção contra os elementos. Foto: Ricardo Funari

A incidência do trabalho escravo em São Paulo evoca a questão já posta pelo jornalista independente e intelectual paraense Lucio Flávio Costa no passado: O trabalho escravo é uma anomalia amazônica?


Desde 2003, 192 pessoas foram autuadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego por submeter seus empregados a regime de trabalho análogo à escravidão. Mais de dois terços dessas empresas (147) atuam na Amazônia Legal. O campeão nacional do trabalho escravo é o Pará, com quase um quarto de todas as atuações, 52. As duas colocações seguintes nesse nefando ranking são ocupadas por Estados amazônicos: Tocantins (43) e Maranhão (32).

O que leva à concentração dos casos de exploração de mão-de-obra não é uma anomalia amazônica, mas o fato de a região constituir a área de expansão da fronteira econômica do Brasil. Há o pressuposto tácito (ou tático) de que o pioneiro não traz necessariamente consigo a contemporaneidade.

O que Lúcio Flávio Pinto quer dizer é que apesar da incidência do trabalho escravo ser maior na fronteira, pelas condições favoráveis (além das geográficas, conforme diz Lúcio Flávio Pinto: a ausência da contemporaneidade, da justiça, da educação etc.), ela é perpetrada por agentes econômicos, fazendeiros e empresários, de todas as partes do Brasil, sempre pactuados com atores locais. Ou seja, é “a ocasião que faz o ladrão” e em diversos contextos favoráveis para a exploração da mão-de-obra, a herança escravagista brasileira se manifesta. Fora da fronteira, outros fatores contribuem para a ocorrência do fenômeno, tal como: a gestão municipal indiferente, pouca fiscalização, sindicatos inatuantes, trabalhadores imigrantes, vulneráveis e desinformados.




Cortadores de cana no alojamento: sem água potável, camas, luz elétrica, cozinha ou banheiro. Foto: Ricardo Funari.

O caso de Mogi-Guaçu não é isolado e os blogueiros brasileiros vêm regularmente reportando a incidência de trabalho escravo em São Paulo, tanto na área rural quanto na área urbana. Este ano, o blog Anjos e Guerreiros citou matéria sobre um flagrante de trabalho escravo e exploração de mão-de-obra infantil em uma fazenda que produz limão em Cabreúva, a 70 quilômetros da capital paulista.


Uma denúncia levou a polícia até a fazenda. Um lavrador estava na propriedade há quatro meses e conta que não recebeu nenhum pagamento. Os responsáveis pela contratação devem responder por exploração de trabalho infantil.
- Às vezes o povo dá um pouco de comida. Tem vez que nós não comemos, não almoçamos e nem jantamos.
Os funcionários contaram para os policiais que havia crianças trabalhando na colheita de limão. O Conselho Tutelar foi chamado e flagrou seis menores trabalhando no local. Um deles, um menino de 12 anos.

- Não tem luvas nem tinha equipamento, nem água. Eu ganho R$ 2 reais – diz o menino.
Uma adolescente conta que os patrões pediram para todos fugirem assim que ficaram sabendo que a polícia ia chegar.
- Nós dissemos que não fugiríamos – afirmou.

Na cidade de São Paulo, em plena área urbana, a incidência de trabalho escravo tem outras características para as quais o blog Verdefato chama a atenção:


O trabalho escravo urbano é menor se comparado ao do meio rural. A Polícia Federal, as Delegacias Regionais do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho e o Ministério Público Federal já agem sobre o problema. Vale lembrar que a escravidão urbana é de outra natureza, com características próprias… O principal caso de escravidão urbana no Brasil é a dos imigrantes ilegais latino-americanos – com maior incidência para os bolivianos – nas oficinas de costura da região metropolitana de São Paulo. A solução passa pela regularização da situação desses imigrantes e a descriminalização de seu trabalho no Brasil.




Um informante encapuzado que conseguiu escapar da fazenda (ao fundo) leva a Polícia Federal a um local onde os trabalhadores são mantidos presos. Foto: Ricardo Funari

O blog também relata a uma situação de uma imigrante boliviana, uma dentre tantos estrangeiros ilegais no Brasil trabalhando nessas condições:


Sentada há mais de 16 horas diante da máquina de costura, a mãe de Ramón tem pressa. Maria Diaz costura uma peça de roupa atrás da outra, intensamente. Ela tem uma agenda para cumprir. Só pára quando precisa comer ou ir ao banheiro. A mãe do pequeno Ramón é uma mulher exausta.

Desde que chegou ao Brasil, em 2003, trabalha do amanhecer até tarde da noite. Não tem carteira assinada, equipamento de proteção, assistência médica. Ela não existe nos registros de imigração. Oficialmente, o governo brasileiro não sabe de sua presença. Tampouco sua saída da Bolívia, em 2003, foi registrada pelo governo daquele país. Maria foi trazida para São Paulo por intermediários conhecidos como “coiotes”, que ganham dinheiro contrabandeando gente de um país para outro. Em São Paulo, pelo menos 100 mil bolivianos estão nessa situação.




Um homem encontrado preso em uma fazendo faz a barba para ser fotografado para a primeira carteira de trabalho que já teve na vda. Foto: Ricardo Funari.

Ainda em São Paulo, um artigo do sociólogo e vereador Floriano Pesaro citado no blog Coisas de São Paulo, discute o caso das crianças de rua que são obrigadas pelos pais a trabalharem. Trata-se de um caso misto de duas infrações: o trabalho infantil e análogo à escravidão:


O trabalho infantil nas ruas, no comércio e até dentro de casa resiste no Brasil urbano e rural. Manifesta-se em suas piores formas, com práticas análogas ao trabalho escravo: exploração sexual comercial, venda e tráfico de crianças para trabalho ou exploração sexual, uso de crianças no comércio de drogas. Estas práticas envolvem atividades criminosas que são ilícitas e que levam crianças e adolescentes à morte. Na cidade de São Paulo, de acordo com pesquisa da FIPE, de 2007, são pouco mais de mil crianças em trabalho infantil somente nas ruas.

Ao escrever esse artigo para o Global Voices Online, fiquei pensando se disseminar tão más notícias para o mundo inteiro não prejudica a imagem do Brasil no exterior, mas um blog muito interessante, do Edson Rodrigues, me ajudou a refletir sobre o assunto. Ele traz uma lista de 15 Verdades e Mentiras sobre o trabalho escravo no Brasil e numa delas discute se a divulgação internacional do trabalho escravo traz prejuízos ao país:


12) Mentira: A divulgação internacional prejudica o comércio exterior e vai trazer prejuízo ao país.
Verdade: Isso é uma falácia. Não erradicar o trabalho escravo é que prejudica a imagem do Brasil no exterior. As ameaças de restrições comerciais serão levadas a cabo se o país não fizer nada para resolver o problema. Que usamos trabalho escravo, isso é público e notório…A agricultura é fundamental para o desenvolvimento do país. Por isso mesmo, ele deve estar na linha de frente do combate ao trabalho escravo, identificando e isolando os empresários que agem criminalmente. Dessa forma, impede-se que uma atividade econômica inteira venha a ser prejudicada pelo comportamento de alguns poucos.




Emissão de documentos trabalhistas na floresta. Foto: Ricardo Funari.

Faço dele as minhas palavras e concluo este artigo certa de que o trabalho escravo é um resquício generalizado da escravidão no Brasil e que anomalia é não combater este fenômeno sempre de frente.



As fotos que ilustram esse artigo foram gentilmente cedidas pelo fotógrafo baseado no Rio de Janeiro Ricardo Funari, que trabalha criando e documentando a injustiça social no Brasil. Segundo o que conheceu por meio de seu trabalho, “em geral, o trabalhador é reduzido à condição de escravo na sua forma mais aguda, com a mercantilização do trabalho braçal. Atraído por falsas propostas de boa remuneração feitas pelo “gato”- o empreiteiro de mão-de-obra – o lavrador deixa a família, a maioria das vêzes indo para outro estado, na esperança de um futuro que o livre da miséria. As despesas e alimentação são pagas pelo “gato”que, ao final de viagem o entrega a um fazendeiro. Está dado o primeiro golpe: antes mesmo de começar a trabalhar, o peão já tem uma dívida com o “gato”, não importa que tenha viajado milhares de quilômetros em velhos ônibus, quebrados, sujos e desconfortáveis, e sobrivivido a pão e refrigerantes. O próximo passo é tornar esta dívida impagável. Para isso, são cobrados do trabalhador as ferramentas do trabalho, o abrigo em galpões imundos e em condições de higiene subumanas, além dos mantimentos comprados a preços exorbitantes nos armazéns que funcionam dentro das fazendas. É o chamado “sistema barracão”, pelo qual a dívida se transforma em um instrumento eficaz, no sentido de reduzir os trabalhadores à situação de escravos.” Seu album de fotos, Contemporary Slavery in Brazil, pode ser visto no Flickr.




Um trabalhador desdentado cai na risada ao receber pagamento de acordo com a lei. Foto: Ricardo Funari