quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Frustrações em Portugal: gaúchos narram suas experiências como imigrantes


A avalanche de brasileiros tentando a sorte na pátria mãe inclui alguns bem-sucedidos e muitos que, após um período de decepções, têm de fazer as malas para voltar

LARISSA ROSO


 O fotógrafo Fabiano foi para Lisboa, mas, com dificuldades, teve de vender seu equipamento para pagar a passagem de voltaAnselmo Cunha / Agencia RBS

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“Aluguéis caríssimos, subempregos, xenofobia. Sim, brasileiros sofrem muito com xenofobia aqui em Lisboa! Portugal é lindo, maravilhoso para quem tem dinheiro e para quem vem turistar, mas para trabalhar... Está cada vez mais escravidão!”, lamenta uma mulher. “Estou indo embora na próxima semana. Motivos? Muitos! Salário mínimo muito baixo, aluguel superalto, impostos nas alturas. Só gastei dinheiro com a minha cidadania portuguesa para nada. Uma grande ilusão! Muitos brasileiros têm vergonha de dizer a verdade... Vergonha de falar que a vida não é fácil”, comenta outra. “A maioria das pessoas pinta o quadro mais bonito do que ele realmente é. Portugal é um país tranquilo para se viver, mas não é fácil como todos dizem, escrevem e postam”, define um terceiro participante da discussão.



Os comentários constam da página Portugal que Ninguém Conta, grupo com quase 65 mil membros que são convidados a compartilhar suas histórias e impressões sobre o país que virou moda entre brasileiros nos últimos anos, atraindo uma multidão de aspirantes a uma nova vida na Europa – porta pela qual, atualmente, parece ser mais fácil entrar. “A intenção, em momento nenhum, é desmoralizar Portugal, e sim mostrar que emigrar não é tão fácil como dizem”, lê-se na descrição da comunidade virtual.




Números comprovam o que facilmente se percebe no dia a dia: não é preciso procurar muito para localizar alguém que conhece alguém que desistiu da vida no Brasil e resolveu tentar a sorte, com mais ou menos recursos e planejamento, do outro lado do Oceano Atlântico. Os brasileiros continuavam compondo, em 2018, a maior comunidade estrangeira residente no pequeno país ibérico, com um total de 105.423 pessoas, número que representa um salto de 23,4% em relação a 2017, de acordo com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Trata-se do índice mais elevado desde 2012. Não entram nessa soma cidadãos com dupla cidadania ou em situação irregular.

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O Programa de Apoio ao Retorno Voluntário e à Reintegração (ARVoRe) da Organização Internacional para as Migrações (OIM), ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), informa que 353 brasileiros – de 616 inscritos – receberam auxílio em dinheiro para voltar ao Brasil no ano passado, o que corresponde a 93% do total de indivíduos amparados pela agência no período. É o maior número de migrantes do Brasil ajudados desde 2013. Em 2019, até o final de maio, a OIM contabilizou 282 migrantes interessados, sendo 254 deles (90%) brasileiros. Em junho, 13 brasileiros regressaram.


As estatísticas também mostram que a expectativa pode se transformar em inesperado pesadelo logo no desembarque: em 2018, 76,3% dos viajantes barrados (2.866) na tentativa de entrar em Portugal eram brasileiros, mais do que o dobro (114,5%) dos rejeitados no ano anterior, segundo o SEF.


Aluguéis caríssimos, subempregos, xenofobia. Sim, brasileiros sofrem muito com xenofobia aqui em Lisboa! Portugal é lindo, maravilhoso para quem tem dinheiro e para quem vem turistar, mas para trabalhar... Está cada vez mais escravidão!
USUÁRIA DO FACEBOOK




Em julho de 2018, depois de percorrer 1,2 mil quilômetros do território lusitano, visitando cidades de Norte a Sul, GaúchaZH publicou reportagem com histórias de gaúchos que se arriscaram a encarar o desafio da mudança, narrando dificuldades, sucessos e aprendizados em uma nação que assistia à quarta grande onda migratória contemporânea de brasileiros, motivada pela acentuação da crise econômica e política do lado de cá e pela melhora das perspectivas por lá. Um ano depois, procuramos pessoas que desistiram do idílio português ou que, frente a enormes obstáculos, quase começaram a preparar as malas para o regresso ao Rio Grande do Sul.


Fabiano Luis Knopp, 43 anos, de Caxias do Sul, viveu em Lisboa entre abril e outubro do ano passado. Realizava, na maturidade, o sonho juvenil de morar no Exterior, adiado quando se tornou pai aos 25 anos. Fotógrafo, Knopp sabia do grande número de colegas brasileiros que exerciam a profissão em Portugal. Com a oferta de auxílio de um conhecido, resolveu se aventurar.


– Fui com a intenção de não voltar tão cedo, ou melhor, voltar apenas para visitar – recorda.
Fabiano Knopp: "Fui com a intenção de não voltar tão cedo, ou melhor, voltar apenas para visitar"Anselmo Cunha / Agencia RBS


O começo pareceu promissor. Knopp se hospedou na casa de amigos brasileiros. Ao pé do Cais do Sodré, na margem sul da capital, admirava uma vista incrível do Rio Tejo e da Ponte 25 de Abril, com diminutos barcos de pesca misturados a gigantescos cruzeiros. Passadas duas semanas, abraçou o primeiro trabalho, fotografando um casamento. Pesquisou preços e apresentou, na ânsia de ser aceito, um orçamento de 250 euros, baixo para os padrões locais, que foi aprovado pelos noivos. “Nossa! Comecei muito, mas muito bem”, pensou. A realidade logo se provaria bem mais árdua. Knopp teve de procurar outro endereço, além de uma colocação na área de restauração, que é como os portugueses se referem ao ramo de restaurantes e alimentação, uma vez que os trabalhos de foto sumiram. Encontrou emprego em um ponto tradicional da Praça das Flores. No início do verão, época repleta de turistas, preparava sanduíches, sucos e cafés, lavava a louça, limpava o chão e os banheiros, pela manhã e à tarde.


— Tinha que ser tudo muito rápido, pois português não tem muita paciência. Falamos o mesmo idioma, mas as diferenças são grandes no vocabulário, na cultura e nos costumes. Não foi nada fácil.


Quando passou para o turno da noite, a correria aumentou. Seu horário, oficialmente, era das 14h à meia-noite, mas, em geral, deixava o serviço de madrugada, chegando em casa somente às 2h30min. Dependia de ônibus — ou caminhava 40 minutos — e barco. Dispunha de apenas uma folga semanal, e os intervalos para o jantar eram de 30 minutos. No restante
do tempo, Knopp ficava de pé. O ritmo era frenético.


— Eu estava me acabando — resume.


Decidiu largar o posto e começou na telentrega de comida. Não pagava pelo aluguel da moto, mas deixava 50% do que ganhava com o dono do veículo. Sobrava quase nada. A situação foi piorando. O caxiense dividiu moradia com outras quatro pessoas, dormindo em um sofá na sala. Trabalhou também em uma churrascaria, onde, com o fogo a pleno, a temperatura sufocava aos 47ºC no verão. Cumpriu turnos de até 16 horas de trabalho. O fotógrafo lembra de um dia em que, durante o almoço, o assunto da mesa eram o Brasil e os brasileiros.


Não tenho vergonha de falar que passei fome, que por semanas almoçava somente feijão ou massa. À noite, comia torta de maçã do McDonald’s porque eram duas por um euro (cerca de R$ 4,50). Fui ajudado por pessoas incríveis. Me perguntam se não deu certo. Para mim, deu. Acredito muito no tempo e na intensidade das coisas. Acho que esse era o meu tempo naquele momento. Não me arrependo. Perguntam se volto... quem sabe, né? Porém, desta vez, faria um pouco diferente e já sabendo como as coisas funcionam.
FABIANO KNOPP

Fotógrafo


— E tu, zuca (diminutivo de “brasuca”), o que acha dos brasileiros? — questionou um português.


Até então comendo em silêncio, Knopp, cansado das comparações, despejou:


— Há brasileiros e brasileiros, assim como portugueses e portugueses. É uma questão de cultura, é o sujo falando do mal lavado. Não podemos nunca generalizar.


Em 12 de agosto, domingo em que era celebrado o Dia dos Pais na terra natal, Knopp foi dispensado. Por mais esgotado que se sentisse, o fotógrafo lamentou perder o mínimo de estabilidade que conseguira até então, focando na promessa de que lhe seria dado um contrato de trabalho, o que o auxiliaria a permanecer legalmente em Portugal. Do pouco dinheiro que recebeu, emprestou uma quantia para um conhecido, que até hoje lhe deve. Ao retomar a função como motoboy, decidiu voltar para o Brasil.


— Pesei muito, falei com minha família e fiz uma coisa da qual talvez hoje me arrependa, mas, no meio do furacão, sozinho e sem ninguém, cabeça cheia, preocupado, nervoso, pois os dias foram passando... Minha última saída foi vender meu equipamento de fotografia para voltar — narra, ainda pesaroso por ter tido de abrir mão da câmera e das lentes.


Knopp ainda teve uma última experiência, considerada a melhor delas, em um pequeno restaurante com cardápio típico da Ilha da Madeira. Conseguiu dar risadas e aprender, mas a passagem aérea já estava comprada. Ao fazer um balanço, ele dá medidas iguais a reveses e boas experiências.


— Não tenho vergonha de falar que passei fome, que por semanas almoçava somente feijão ou massa. À noite, comia torta de maçã do McDonald’s porque eram duas por um euro (cerca de R$ 4,50). Fui ajudado por pessoas incríveis. Me perguntam se não deu certo. Para mim, deu. Acredito muito no tempo e na intensidade das coisas. Acho que esse era o meu tempo naquele momento. Não me arrependo. Perguntam se volto... quem sabe, né? Porém, desta vez, faria um pouco diferente e já sabendo como as coisas funcionam — diz Knopp, ainda se readaptando à Serra (está vivendo em Farroupilha) e sem câmera própria.

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

História de imigrante: francescoMatarazzo,o "imperador do Brasil"




Fabricante de fábricas, Francesco Matarazzo cresceu nas crises e ajudou a construir o capitalismo brasileiro

Fabricante de fábricas, italiano cresceu nas crises e ajudou a construir o capitalismo brasileiro

Empresário italiano radicado no Brasil, Francesco Matarazzo deixou sua marca na história por ter fundado o maior complexo industrial da América Latina. Quando morreu, aos 83 anos, ele deixou uma fortuna avaliada em cerca de US$ 10 bilhões.

Nascido em Castellabate, na província de Salerno, ele chegou ao Brasil em 1881, aos 27 anos.

Ao contrário do que muitos dizem, Matarazzo desembarcou em Santos com uma condição diferente de seus conterrâneos, que vinham fugidos da fome, e em busca de uma vida melhor.

A família de Francesco Matarazzo, na Itália, era rica.

Sua história vencedora em território brasileiro começa, de fato, em 1883 em Sorocaba, cidade do interior paulista, que na época tinha pouco mais de 13 mil habitantes.

Lá, ele abriu um armazém de secos e molhados, na sua própria casa. Sua primeira fábrica contava com uma prensa de madeira e um grande tacho de metal. O artefato era usado para produzir banha de porco em lata, afinal, era o produto necessário para a cozinha naquela época.

Ele próprio, no lombo de uma mula, percorria o interior de São Paulo em busca de porcos e para vender a banha que produzia.
Visão de negócio

Naquela época, boa parte da banha era importada dos Estados Unidos e vinha em barricas de madeira, que muitas vezes deixavam o conteúdo estragar.

Ao usar embalagens de metal, Matarazzo aumentava a durabilidade do produto e permitia que os consumidores comprassem quantidades menores, evitando o desperdício.

O sucesso fez que alguns dos irmãos de Matarazzo também desembarcassem no Brasil anos depois.

Matarazzo pensou em voltar para a Itália, mas os amigos italianos o convenceram que São Paulo seria a melhor opção.

Afinal, a capital era para onde estavam indo os vultuosos lucros do café. A cidade não tinha mais do que 65 mil pessoas quando ele chegou, em 1890.
Seu nome era trabalho

Começava o império de Francesco Matarazzo. Na capital financeira do Brasil, ele chegou a ter mais de 200 fábricas, que juntas, faturavam mais do que a produção individual de todos os estados brasileiros, com a exceção de São Paulo.

Sua paixão era visitar ao menos uma de suas instalações por dia, hábito que manteve até passar dos 80 anos.

Ele acordava por volta de 4 da madrugada e continuava a trabalhar até a noite.

Em São Paulo, Matarazzo tornou-se o maior maior vendedor de farinha de trigo – importada dos Estados Unidos –, mas sem negar as origens. Ele manteve as lucrativas fábricas de banha: a de Sorocaba e outra em Porto Alegre.
Os números das Indústrias Matarazzo

Segundo historiadores, Francesco Matarazzo acumulou um patrimônio que o colocaria confortavelmente entre os dez homens mais ricos do mundo, e o maior do Brasil.

As Indústrias Reunidas Fábricas Matarazzo, as IRFM, chegaram a empregar mais de 30 mil pessoas, número que pouquíssimas empresas privadas atingem no Brasil de hoje.

Apesar de ser um dos homens mais poderosos de sua época, Matarazzo era simpático e não gostava de ostentações.

Em 1924, em Nápoles, o conde deu provas disso ao encomendar um terno na sua alfaiataria preferida.

O alfaiate estranhou, dizendo que um filho do industrial havia passado lá mais cedo e mandado fazer não um, mas seis trajes. Matarazzo não titubeou: “Ele tem pai rico, eu não”.

Ao morrer, o empresário deixou a viúva Filomena, 11 filhos e mais de 30 netos e de dez bisnetos. A grande família do patriarca é parte da explicação de como um complexo industrial dos maiores já vistos no mundo pôde desaparecer.

Francesco Matarazzo jamais se naturalizou, mas sempre que podia, elogiava o país que o acolheu. O empresário ganhou o título de Conde do Reino da Itália – e passou a ser chamado assim também no Brasil.

Ele morreu em 1937, vítima de falência renal, às vésperas de completar 83 anos.
O declínio do império

Como um império empresarial pode ruir? De acordo com análises feitas ao longo do tempo, a má administração dos negócios da família e conflitos familiares foram os faotores determinantes.

A falta de dinamismo para a crescente concorrência nacional e multinacional também contribuiu.

Apesar disso, algumas empresas do grupo resistiram até 1983, até entrarem em concordata. Iniciando o desmanche final do império, que incluiu venda de bens, disputas familiares, ações trabalhistas e arrendamento de fábricas.
10 fatos sobre Francesco Matarazzo
Ao desembarcar no Brasil, ele viu naufragar as duas toneladas de banha de porco que havia trazido para iniciar uma atividade comercial no país.
Matarazzo foi fundador da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP).
Ele foi o doador do terreno, onde até hoje fica sua sede do clube Palestra Itália (o atual Palmeiras).
Matarazzo era uma verdadeira atração turística: os pais levavam os filhos para ver o empresário sair de carro – ou passear na calçada fumando seu charuto.
Ele jamais aprendeu a falar claramente o português, e se expressava no melhor estilo macarrônico.
Matarazzo contribuiu com muito dinheiro para o regime facista de Mussolini. O conde não escondia sua admiração pela figura do ditador, pela sua visão de mundo e pulso firme.
Ele nunca conseguiu superar a tragédia do filho morto em um acidente de carro em Turim.
Foi o primeiro presidente do Banco Italiano do Brasil, cujo objetivo principal era fazer remessas de dinheiro para a Itália, realizadas por italianos que trabalhavam no Brasil.
A importância de Matarazzo na economia do Brasil só é comparável à que teve o visconde de Mauá no Segundo Reinado do Império brasileiro (1822-1889).
Cerca de 100 mil pessoas saíram às ruas para se despedir no dia do seu sepultamento.

domingo, 29 de novembro de 2020

'Não rejeitamos estrangeiros se forem turistas, cantores ou atletas famosos, rejeitamos se forem pobres'


Irene Hernández Velasco
HayFestivalArequipa@BBCMundo
3 novembro 2020



CRÉDITO,ADELA CORTINA
Legenda da foto,

Adela Cortina cunhou um novo termo: 'aporofobia', que significa ódio aos indigentes, aversão aos desfavorecidos


A escritora e filósofa Adela Cortina (nascida em Valência, Espanha, em 1947) tem, entre suas muitas realizações, a de ter levado à língua espanhola um termo que a Real Academia da Língua adotou para definir o ódio aos indigentes, a aversão aos desfavorecidos.


E é precisamente esse termo que abre o título de seu último, Aporofobia, el rechazo al pobre (Aporofobia, a rejeição ao pobre, em tradução livre). Nascida em Valência, Espanha, em 1947, Adela é doutora honoris causa por diversas universidades, membro da Real Academia de Ciências Morais e Políticas de Espanha (foi a primeira mulher em fazer parte dessa instituição), professora emérita de Ética da Universidade de Valência e diretora da fundação Étnor.


Ela concedeu entrevista à BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC, no Hay Festival Arequipa 2020, no Peru, um encontro virtual de escritores e pensadores.


A seguir, os principais trechos da entrevista.





BBC Mundo - Você cunhou há mais de 20 anos o termo "aporofobia", reconhecido pela Real Academia da Língua e incluído em seu dicionário. Como surgiu? De onde vem etimologicamente?

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Adela Cortina - O termo "aporofobia" vem de duas palavras gregas: "áporos", o pobre, o desamparado, e "fobéo", que significa temer, odiar, rejeitar. Da mesma forma que "xenofobia" significa "aversão ao estrangeiro", aporofobia é a aversão ao pobre pelo fato de ser pobre.


E a palavra surgiu da forma mais simples, quando percebemos que não rejeitamos realmente os estrangeiros se são turistas, cantores ou atletas famosos, rejeitamos se eles são pobres, imigrantes, mendigos, sem-teto, mesmo que sejam da própria família.



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Legenda da foto,

Da mesma forma que 'xenofobia' significa aversão ao estrangeiro, 'aporofobia' é a aversão ao pobre pelo fato de ser pobre


BBC Mundo - Por que é importante que haja uma palavra para denominar o ódio aos sem-teto?


Cortina - Porque as pessoas precisam dar nomes às coisas para reconhecer que existem e identificá-las; ainda mais se forem fenômenos sociais, não físicos, que não podem ser apontados com o dedo.


Nomear a rejeição aos pobres permite-nos tornar visível esta patologia social, investigar as causas e decidir se concordamos que continue a crescer ou se estamos dispostos a desativá-la por nos parecer inadmissível.


BBC Mundo - A aporofobia é um fenômeno especialmente de nossos tempos, em que o sucesso e o dinheiro são concebidos por muitos como valores supremos?


Cortina - Infelizmente, a aporofobia sempre existiu, está nas entranhas do ser humano, é uma tendência universal.


O que acontece é que algumas formas de vida e algumas organizações políticas e econômicas promovem a rejeição aos pobres mais do que outras.


Se em nossas sociedades o sucesso, o dinheiro, a fama e o aplauso são os valores supremos, é praticamente impossível fazer com que as pessoas tratem todas as pessoas igualmente, reconhecendo-as como iguais.



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Cortina aponta que imigrantes e refugiados não são bem-vindos em todos os países, inclusive alguns partidos políticos ganham votos quando prometem fechar suas portas


BBC Mundo - Como a aporofobia se manifesta na sociedade? Você pode nos dar alguns exemplos?


Cortina - Claro. Imigrantes e refugiados não são bem-vindos em todos os países, inclusive alguns partidos políticos ganham votos quando prometem fechar suas portas.


Tratamos com muito cuidado pessoas que podem nos fazer favores, nos ajudar a encontrar um emprego, ganhar uma eleição, nos apoiar a vencer um prêmio e abandonamos aquelas que não podem nos dar nada disso.


A sabedoria popular diz que você deve trocar favores em frases como "hoje por você, amanhã por mim", e os pais muitas vezes aconselham seus filhos a se aproximarem de crianças em melhor situação. O bullying escolar é um exemplo de aporofobia.


BBC Mundo - De onde vêm a aversão e o medo dos pobres, de que se alimenta a aporofobia? É algo biológico, neuronal ou cultural?


Cortina - Para colocar em uma palavra muito bonita e muito apropriada, é biocultural.


A evolução do nosso cérebro e da nossa espécie é biológica e cultural, ambas as dimensões estão interligadas, influenciam-se mutuamente.


No caso da aporofobia, existe uma base biológica, uma tendência a colocar o que não interessa entre parênteses, o que pode ser reforçado pela cultura ou desativado, cultivando outras tendências, como simpatia ou compaixão.



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Cortina é membro da Real Academia de Ciências Morais e Políticas da Espanha. Ela foi a primeira mulher a fazer parte dessa instituição


BBC Mundo - Você argumenta que a aporofobia é universal e que todos os seres humanos são aporófobos. Em que você baseia essa afirmação?


Cortina - No fato de a antropologia evolutiva mostrar que os seres humanos são animais recíprocos, estão dispostos a dar aos outros, mas desde que recebam algo em troca, seja da pessoa a quem deram ou de outra em seu lugar.


Este mecanismo tem sido denominado "reciprocidade indireta" e é a base biocultural de nossas sociedades contratuais, tanto políticas quanto econômicas.


Estamos prontos para cumprir nossos deveres se o Estado proteger nossos direitos, estamos prontos para cumprir nossos contratos se outros o fizerem.


Mas quando há pessoas que parecem não conseguir nos dar nada de interessante em troca, nós as excluímos desse jogo de dar e receber. Esses são os pobres, os excluídos.


BBC Mundo - As religiões tradicionalmente pregam em favor dos pobres. O catolicismo garante, por exemplo, que deles será o reino dos céus, e o papa Francisco está constantemente mostrando seu apoio aos pobres. A crise das religiões está relacionada à aporofobia?


Cortina - Mais do que uma crise de religiões, eu falaria sobre o fato de que, com algumas exceções, vivemos em sociedades pós-seculares.


Nelas, o poder político e o religioso não se unem, o que é excelente, porque então o pluralismo é um fato, mas as religiões não desapareceram, continuam a ser fonte de vida e de sentido para muitas pessoas e para muitos grupos sociais.


Até mesmo seus valores, junto com outros, estão na raiz dos valores da ética cívica nesses países.


Quanto ao cristianismo, efetivamente aposta em todos os seres humanos e no cuidado da natureza, mas por isso mesmo, num mundo onde há ricos e pobres, faz uma opção preferencial pelos pobres, exigindo que eles sejam fortalecidos para que possam sair da pobreza.



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Cortina acredita que a aporofobia é universal e que todos os seres humanos são aporófobos


BBC Mundo - A pandemia de coronavírus e a crise econômica que ela desencadeou podem aumentar a aporofobia?


Cortina - Por um lado, sim, porque quando as pessoas se encontram em situações de incerteza e medo, tendemos a fechar-nos em nós mesmos. Mas, por outro lado, o que a pandemia está mostrando é que foi a solidariedade que salvou vidas e evitou mais sofrimento.


Mostrou que somos interdependentes, e não independentes, que o apoio mútuo é o que nos salva. E essa força de solidariedade e compaixão é o que deve ser cultivado como o melhor aprendizado com a pandemia.


BBC Mundo - Você acha que a rejeição aos pobres está por trás da onda de xenofobia que nos últimos anos atingiu os Estados Unidos e a Europa? Se sim, por quê?


Cortina - Porque quando a situação política e econômica é ruim, buscam-se bodes expiatórios e os estrangeiros pobres são bodes expiatórios. Fechar as portas para eles, garantir que sejam um perigo e defender os de dentro contra os de fora é a tática dos supremacistas. Mas principalmente diante dos pobres.


BBC Mundo - Você considera que Donald Trump sofre de aporofobia? É possível que muito de seu sucesso político resida precisamente em sua aporofobia?


Cortina - Sim, acho que sim, e o mais triste é que isso gera votos. Ele não é um personagem extravagante e perturbado, mas um que sabe perfeitamente que muitas pessoas concordam com ele e, com isso, reforça sua aporofobia.


Veremos o que acontecerá na eleição e esperamos que a estratégia não dê bons resultados. Mas o pior é que Trump não é um caso isolado.



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A aporofobia existe e não é apenas uma questão econômica, mas a rejeição dos piores colocados em cada situação


Em cada um de nossos países, o supremacismo nacionalista rejeita os que estão em pior situação e essa tática lhes dá votos. No século 21, devemos reverter essa tendência.


A aporofobia ameaça a democracia porque viola a igual dignidade de todas as pessoas, exclui os pobres, os que parecem não ter o que trocar.


É radicalmente excludente, quando a democracia deveria ser inclusiva.


BBC Mundo - E qual dano a aporofobia causa a quem sofre dessa patologia social? Estamos cientes de que somos aporofóbicos?


Cortina - Não estamos. Por isso é necessário falar sobre essa patologia na esfera da opinião pública e tentar descobrir em que medida a aporofobia está envolvida em nossas vidas.


Felizmente, existem grupos trabalhando nesse sentido, jovens realizando projetos de licenciatura, mestrado e projetos de pesquisa sobre aporofobia.


BBC Mundo - A aporofobia também se manifesta entre países? Os estados mais ricos mostram aversão aos mais pobres? E dentro dos países pobres também há aporofobia ou é mais prevalente nos países ricos?


Cortina - Claro, os países procuram a ajuda dos mais poderosos e isso explica, por exemplo, que se aproximem da China, esquecendo que o país não quer falar de direitos humanos.


E, dentro de cada país, acredito que em todos eles há também uma tendência de se afastar dos em situação pior, tratá-los como leprosos, no sentido bíblico da palavra.


BBC Mundo - Como a aporofobia pode ser combatida?


Cortina - Percebendo que ela existe e que não é apenas uma questão econômica, mas a rejeição dos piores colocados em cada situação.


Creio que se luta construindo instituições baseadas na igualdade de valor das pessoas, e educando no respeito pela dignidade de todas elas, e não só com palavras, mas também mostrando no dia a dia que nos reconhecemos e nos sentimos igualmente dignos.