quarta-feira, 27 de agosto de 2014

A chegada dos imigrantes no Brasil : 120 anos depois



A CHEGADA DOS IMIGRANTES NO BRASIL: 120 ANOS DEPOISPor Almanaque Urupês em setembro 20, 2013@almanaqueurupes





Por Elaine Rocha

Quando aprendemos sobre a história do Brasil na escola, o capítulo que trata da chegada dos imigrantes é sempre um tanto festivo. Desde as primeiras séries primárias professores e alunos animam-se ao falar da chegada dos estrangeiros ao Brasil, em especial dos italianos, espanhóis e portugueses, mas também dos alemães, japoneses, sírio-libaneses e outros grupos menores. Em escolas ou turmas mais animadas pode-se ter verdadeiras comemorações, com decoração especial, trajes típicos, comidas tradicionais, às vezes visitantes, música e grupos de dança. A escola vira uma festa! E não apenas a escola mas cidades brasileiras dedicam dias especiais para festejar os imigrantes, com festas que atraem turistas e prolongam-se por dias.

Dá até vontade – naqueles que são 100% brasileiros – de encontrar um antepassado longínquo que a gente pudesse situar em algum canto da Europa para poder celebrá-los também. Me lembro que, aos dez anos de idade, no que naquela época era o quarto ano do Grupo, a professora quis saber quem da turma era descendente de estrangeiros e várias mãos se ergueram ao mesmo tempo em que diziam em voz alta: meu avô era italiano, minha avó veio de Portugal… E a professora ia escrevendo aqueles sobrenomes com dois “t”s ou dois “l”s na lousa. Eu queria dizer uma coisa também, naquela época não conhecia ainda a história do pai do meu bisavô, um escravo que era exímio vaqueiro lá pras bandas do Piauí, mas mesmo que soubesse, não tenho ainda hoje a menor ideia se ele havia chegado de algum lugar da África ou se era filho ou neto de africanos. Então eu levantei a mão e disse algo que ouvia de vez em quando lá em casa: “a avó da minha avó era índia!” (Já dizia Lima Barreto que brasileiro quando quer adicionar alguma nobreza ao seu pobre e irrelevante passado arranja logo uma avó índia). Bem, a minha estratégia não funcionou: tomei uma bronca da professora que me disse pra prestar atenção na aula, que índio não é estrangeiro, e ainda ouvi as risadas dos colegas. Ah, as humilhações dos bancos de escola!


Chegada dos Imigrantes Italianos no Brasil

Os meios de comunicação também contribuem para a heroicização do imigrante: vejam quantas novelas já apresentaram o tema na televisão, e os filmes no cinema. Às vezes algum programa de rádio, muitas canções, e hoje em dia muitos e muitos websites e blogs dedicam-se à saga dos imigrantes no Brasil. Na história de São Paulo, entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX, eles são figuras centrais, como os trabalhadores que vieram substituir o trabalhador negro escravizado. Na capital paulista são celebrados como aqueles que “construíram” a maior cidade do Brasil. E o que aconteceu aos milhares de negros que trabalharam na cafeicultura? Desapareceram subitamente dos livros de história logo depois a abolição.

Este é um grande exemplo da força das ideologias. A ideologia do branqueamento, ainda que baseada em teorias bio-genéticas sem fundamento científico sério, é uma ideologia vencedora, porque se não conseguiu branquear o país, pelo menos branqueou a história do Brasil. E nem as últimas três décadas de estudos sobre os negros no Brasil durante e após a abolição, mostrando os negros ainda nos cafezais do sudeste até a grande crise do café, em 1929, trabalhando lado a lado do estrangeiro, e ensinando-lhes o trabalho, continua a ser ignorado nos currículos das escolas e na maioria dos meios de comunicação (exceção feita para uma novela da Globo que explorou – limitadamente – o tema na cidade do Rio de Janeiro). Quanto à urbanização de São Paulo, o trabalho da construção civil e todos os outros trabalhos de infra-estrutura e mesmo na história do comércio, no setor de serviços e na indústria nascente, os negros são invisíveis. A expressão: “São Paulo foi construída pelos imigrantes” é muito popular, ainda que fotografias antigas mostrem negros e mulatos trabalhando na construção do Viaduto do Chá, por exemplo, ao lado de trabalhadores brancos (estrangeiros?).


Chegada dos imigrantes Japoneses no Brasil, mais de um seculo atrás.

Nos últimos anos, o crescimento econômico brasileiro tem recrutado mão de obra estrageira qualificada em outros países e novamente damos as boas vindas a imigrantes vindos dos Estados Unidos, de Portugal, da Espanha. Muitas vezes recrutados diretamente pelas empresas interessadas em seu trabalho, com benefícios que colocam seus ganhos acima dos brasileiros. A história se repete?

Mais ou menos, porque este tipo de imigrante causa pouco alarde e não tem sido destaque nos noticiários. Agora, a polêmica da imigração volta mesmo à baila é na questão do imigrante indesejado: chineses entrando silenciosamente nas capitais e nas cidades do interior, abrindo seus restaurantes apesar das reclamações dos vizinhos de que não respeitam as normas sanitárias e de higiene, os bolivianos chegando em levas na cidade de São Paulo, que também tem recebido muitos argentinos, mas desses a gente gosta, até achamos bonitos. E o mais perigoso: os imigrantes negros.

No passado havia lei proibindo a entrada de certos imigrantes, em especial dos negros, e havia mecanismos para barrar essa imigração. Mas hoje estamos em pleno século XXI e se os brasileiros sempre se gabaram de não serem racistas, agora então temos as cotas, as ações afirmativas, temos um Joaquim Barbosa, amamos o Obama. Entretanto, o imigrante negro ainda nos assusta, porque não é o que esperávamos enquanto trabalhador estrangeiro e neste momento o Brasil percebe que nem de longe conseguiu superar os preconceitos alimentados contra o trabalhador negro e indígena desde os tempos da colonização e da nossa fé no eugenismo.


Fonte: oglobo.globo.com/infograficos/caminho-ate-brasil/

Imigrantes negros têm chegados ao país na última década, vindos de países africanos como Angola, Nigéria, Senegal, Moçambique e ultimamente em grande número do Haiti. Enquanto os africanos entram diretamente nos aeroportos de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, os haitianos – mais pobres – seguem uma rota parecida com a dos bolivianos, entram pelas fronteiras do oeste, em especial cruzam do Peru para o estado do Acre, onde ficam por tempos em pequenas cidades como Brasiléia, na fronteira do Brasil com a Bolívia, muito próxima também do Peru.


Haitianos no Hotel Brasiléia, no Estado do Acre. Foto: Marcello Casal Jr/ABr

Nesta cidade, que em 2010 contava com pouco mais de 20 mil habitantes, imigrantes negros haitianos chegam a cada dia. Como no passado, alguns têm qualificações profissionais, muitos não as têm, alguns têm documentos e buscam trabalho especializado, outros não têm nada, deixaram documentos e dinheiro nas mãos dos chamados “coiotes” e tentam apenas encontrar um lugar para sobreviver. A cidade, a região e o estado entram em estado de alerta, transformado já em “estado de emergência” pelo governador acreano. Entre os receios infundados: Eles vêm todos contaminados com AIDS! Isso vai aumentar a criminalidade na região! O tráfico de drogas vai ficar mais intenso! Vão praticar o Vudu… Entre os receios com fundamento: a cidade não possui estrutura para abrigar os imigrantes que chegam a cada dia; o sistema de saúde da região é precário e muitos estão chegando doentes; não há empregos na região para toda essa gente.


Haitianos no Hotel Brasileia. Joel Silva/Folhapress

Os meios de comunicação, falhos na pesquisa histórica esquecem-se de quanto imigrantes europeus chegaram ao Brasil a cerca de 100 anos atrás trazendo consigo a tuberculose, as gripes e outras doenças que causaram epidemias. E quantos deles eram analfabetos ou semi-analfabetos, quantos não possuíam qualificação profissional além do instinto de sobrevivência?

Os problemas no norte se acumulam: prefeituras da região amazônica se recusam a aceitar imigrantes haitianos, o governo brasileiro tem limitado o número de vistos e permissão para trabalho, alguns poucos conseguem ser recrutados por empresas, e a maioria sonha em chegar até São Paulo, a meca do desenvolvimento. Os paulistas, que já têm que lidar com os bolivianos – outro grupo de imigrantes considerados como de quinta categoria: pobres, pouco qualificados e com feições de índios – arrepiam-se só em pensar.
Veja matéria de O Globo sobre os imigrantes haitianos no Acre










Parte dos argumentos são corretos: o Brasil ainda enfrenta sérios problemas sociais, sérios problemas de infra-estrutura, grande parte da população não tem acesso a serviços essenciais como água e esgoto, a questão da saúde pública é outra crise que também se insere na questão imigratória: vamos aceitar os médicos imigrantes sem exigir a devida qualificação local, que todos os países requerem e que está diretamente ligada ao bom atendimento – falar a língua local, por exemplo, e saber o equivalente local para a medicina necessária e mesmo as nossas mazelas – sem melhorar a estrutura hospitalar e de diagnósticos? Ah, mas eles são médicos, e a maioria tem a pele clara, a gente deveria aceitar.


Imigrantes Haitianos empregados em Manaus

A questão humanitária se impõe como maior prerrogativa para alguns, que argumentam que o país não deve fechar as portas aos pobres; outros argumentam em favor de trabalhar na qualificação dos trabalhadores nacionais, com melhores escolas e melhores professores com melhores salários, por exemplo. Este argumento é um outro que já completou 100 anos, e do qual Lima Barreto era um defensor. Ele era um dos que dizia que a solução para o Brasil era investir na sua própria gente, ao invés de trazer estrangeiros. Investindo nos brasileiros – segundo ele e outros de sua época – combateríamos a marginalidade e a pobreza resultantes do desemprego e do subemprego.


Imigrantes haitianos cruzando ponte entre Acre e Peru

O fato é que o Brasil não pode acomodar toda a população carente do Haiti, ou da Bolívia, ou de Angola, por exemplo. E precisa, urgentemente, atacar os problemas internos do país se quiser criar uma economia forte com uma sociedade equivalente e uma distribuição de renda menos desigual. Ainda assim, devemos pensar bem antes de atacar o imigrante que não vem da Europa ou dos Estados Unidos, ou melhor: que não é branco, com cabelos e olhos claros.

Preconceitos à parte, o imigrante negro e o elemento indígena têm construído este país há mais de 500 anos, a maior parte deste tempo contra a sua própria vontade, levado de um lugar para o outro, mal pago, mal alimentado e mal educado. A política imigrantista deve ser discutida amplamente e votada, independentemente de cor ou classe. Afinal, a nossa Justiça é ou não é cega?